Crônicas

Seu Carlos

13 de ago, 2018 Crônicas

Atendi o Seu Carlos no escritório. Era um negro baixo, retaco, mais forte do que gordo, com o cabelo curto, bem escuro. Aparentava ser bem mais velho do que seus 49 anos. Caminha devagar, tinha gestos lentos.

Sorriu ao entrar na minha sala e olhar pela janela que fica de frente para o rio Guaíba:

“O campo do meu time....que bonito que é daqui, doutor”

Falava em tom casual, olhando o distante estádio Beira Rio, do Internacional. Vejo uma emoção sincera no comentário, fico quieto, deixo o silêncio na sala, sem nada para falar.

Retomo a consulta. Explico que estudei a papelada e vi que não temos uma ação trabalhista contra a oficina onde ele trabalhou por 27 longos anos, com as mãos engraxadas, com solda castigando seus olhos, sem nenhum equipamento de proteção, desmontando motores, caixa de câmbios, rodas e embreagens. Ele me escuta atencioso, explico as sutilezas da lei, as não anotações dos contratos de trabalho, as interrupções de pequenos períodos. Seu Carlos é mais moço que eu, mas trabalhou muito mais. E eu não posso ajudar no campo do direito do trabalho. Ele balança a cabeça e me diz que entendeu. Não sei se ele entendeu. Como explicar a lei fria e morta para aquele homem que trabalhou a vida toda e não tem direitos? Ele não está com ar de revoltado. Me olha com o respeito dos humildes pelos poderosos que sabem as leis e diz:

“Sabe doutor, tem dias que me dói tudo, as pernas, os braços, as costas. E os olhos não param de ter uma coceira. Tem dias que não tenho forças nos braços.”

Eu ali, parado na frente do homem sem saber o que falar. Ele me socorre:

“Trabalho desde novinho, doutor, sei assinar meu nome, mas meu filho se formou e é professor. Ele que me ajuda. Não consigo mais emprego com esta idade.”

Eu continuo atrapalhado, pensando no seu Carlos, trabalhando em atividades insalubres uma vida inteira e sem direitos. Pego as carteiras de trabalho dele que estão em cima da mesa, castigadas pelo tempo e pelos empregos precários que ele sempre teve. Penso numa saída. Ora, se ele trabalha desde jovem pode ter tempo para se aposentar. Falo entusiasmado, otimista:

“Seu Carlos, vou fazer a contagem de seu tempo de serviço e ver se o senhor tem tempo para aposentadoria.”

Entro no sistema da previdência e confiro todas as contribuições em nome dele são idênticas às anotações que ele tem nas carteiras. Verifico. Faço uma conferência. O tempo de serviço anotado nas carteiras é de 12 anos e 8 meses. Pelo sistema, e sem alterar as regras da previdência, o seu Carlos vai ter que trabalhar mais 22 anos e 4 meses para completar o tempo de serviço.

Pergunto se ele realmente trabalhou 27 anos na tal oficina? Ele confirma que sim e me explica:

“Às vezes eu trocava de empresa, passava para a empresa da filha dele, depois voltava para a empresa velha. Eles ficavam um tempão com a minha carteira no fundo de uma gaveta. Me pagavam em dinheiro, doutor. Em 30 anos, devo ter trabalhado 27 para eles.”

Continuo sem saber o que dizer para ele. As leis e seus caminhos. Como explicar para aquele homem castigado nos seus 49 anos que ele não vai se aposentar por tempo de serviço? Como explicar que ele tem apenas 12 anos de contribuição para a previdência? Como explicar o que é previdência e o que é contribuição? Meu silêncio é de impotência. Tenho raiva e vergonha. O seu Carlos é a cara de tanta gente que já atendi, desprotegida, explorada, vulnerável, abandonada.

Combino com ele um próximo atendimento. Quero falar com seu filho junto, formado em história, professor da rede de ensino municipal. Vou indicar um serviço médico para ver se as dores do seu Carlos ou suas lesões nos olhos não são incapacitantes para o trabalho. Talvez ele não tenha dinheiro para os exames que a lei exige. Maldita lei e seus escaninhos.

Fico pensando na justiça, no direito, na lei. Seu Carlos sorri para mim, com suas mãos negras, manchas de graxa e óleo que não vão sair nunca. Seu Carlos não pensa na lei, no direito ou na justiça. Seu Carlos pensa na vida. Ele levanta, dá uma espiada no Beira Rio, que continua no horizonte, estende sua mão, me cumprimenta e sai caminhando devagar da sala, com a espera de uma vida toda. Ele me deixa ali com o coração na mão, sem saber para onde olhar.

Crônica por Antônio Vicente Martins