Graça, a simples e Nadia, a cruel

14 de Maio, 2020 Crônica

Dando sequência à nossa série de conteúdos especiais, produzidos por nossos advogados e parceiros, hoje, partilhamos com você a crônica a seguir, escrita pelo Dr. Antônio Vicente Martins. Boa leitura!

É noite. Saio apressado do salão da universidade, caminhando no vento, sob uma chuva fina que nem chega a ser chuva. Vou em direção ao meu carro, estacionado no parque. Caminho pela calçada esburacada e mal iluminada. Não faz frio, apenas venta na noite vazia. Vou com o coração aos pulos e a cabeça girando.

Acabei de escutar a conferência de Graça Machel. Graca Machel é uma mulher negra, tem 73 anos. É uma mulher negra de Moçambique, ativista de direitos humanos respeitada mundialmente. Foi a conferencista da primeira noite do Fronteiras do Pensamento de 2019, cujo tema é “O Sentido da Vida”.

A sua fala começou com ela dizendo que ia tratar de coisas simples. E foi assim. Explicou que todos somos iguais, homens e mulheres, cristãos, muçulmanos e ateus, negros e brancos, todos somos iguais. O sangue que corre em nossas veias é vermelho, o mesmo sangue em todos nós. Todos nascemos da mesma forma. Não trazemos nada quando nascemos. Não levamos nada quando morremos. Precisamos respeitar a natureza, cuidar do meio ambiente. Temos que ter tolerância. Mais do que termos tolerância, é preciso saber ter aceitação. Tolerar é muito menos que aceitar. A dignidade humana é a base de tudo. Quando percebemos uma violação a dignidade humana sem nos revoltarmos, estamos nós mesmos sendo responsáveis pela ofensa à dignidade humana. Reduzir investimentos na educação é como amputar um membro do próprio corpo, reduzir investimentos na educação é amputar a juventude e o futuro de uma nação. Ela tratou de coisas simples. Todos somos iguais, a dignidade humana nos faz todos iguais.

Entro no carro, brinco com o guardador que está ali, cuidando da minha segurança. O coração está apressado, as ideias simples que acabei de ouvir inundam cada milímetro do meu corpo. A cabeça vai inundada por tanta coisa bonita que escutei. Estou feliz com a humanidade, tenho esperança na vida. Preciso escutar uma música, acalmar a minha alma, diminuir a agitação de tantas ideias simples. Ligo o rádio do carro e uma voz dura e cortante de maldade me traz de volta para a ficção científica:

“Nós não vamos admitir uma cidade, uma praça que esteja cheia de morador de rua. É um lugar público e as pessoas não podem levar seus filhos, seus pets. Não têm condições de caminhar nem em uma calçada, porque uma pessoa se acha no direito de morar na rua.”

Não podia acreditar no que tinha ouvido. Eram as palavras da Comandante Nádia, Secretária de Desenvolvimento Social e Esporte de Porto Alegre. A crueldade em pessoa. Será que ela acha que o ser humano se acha no direito de morar na rua porque quer morar na rua? Será que ela consegue ter a dimensão do que significa morar na rua? As pessoas não podem passear com seus “pets” porque seres humanos abandonados estão por ali? Ela se preocupa com os “pets”? É muita maldade! Qual a noção de dignidade humana que está criatura pode ter? Abro o vidro do carro, preciso respirar para não vomitar. Deixo o vento entrar com pingos de uma chuva invisível.

A vida não é simples como disse Graça Machel. As pessoas não são iguais como disse Graça Machel. Não é possível aceitar tudo. Não é preciso tolerar tudo. Sinto nojo do ato de violência à dignidade humana. O carro segue seu caminho, me levando para casa, frio e calculista, passando por homens e mulheres invisíveis nas esquinas, moradores da rua, desprezíveis seres humanos que atrapalham o passeio de “pets” de Nadia, a cruel.

E o mais estranho de tudo, muitos destes humanos moradores de rua, oportunistas posseiros de terras públicas que adoram viver ao sol, no frio, na chuva, pelo prazer de não ter uma casa, também carregam seus bichinhos de estimação, os seus próprios “pets”. Nadia, a cruel não faz referência a estes “pets” dos moradores da rua, certamente são cães raivosos e doentes. Ela se preocupa com os “pets” bem nascidos, que tem casa para morar.

Chego em casa. Estou cansado. Meu coração tem que escolher um lado. Faço a opção pelo que tem que ser a vida. Eu quero o simples. Estou ao lado de Graça, a Simples. Não poderia estar ao lado de Nadia, a cruel. Quero a dignidade humana. Sei que todos somos iguais. Levo isto no coração. É noite, desço do carro, caminho devagar no vento. Já não chove mais e meu rosto está molhado.

Crônica por Antônio Vicente Martins

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